segunda-feira, 26 de novembro de 2012


O eu e o outro – poesia e narcisismo

Carinhoso
Pixinguinha

Meu coração, não sei por quê
Bate feliz quando te vê
E os meus olhos ficam sorrindo
E pelas ruas vão te seguindo,
Mas mesmo assim foges de mim.

Ah se tu soubesses
Como sou tão carinhoso
E o muito, muito que te quero.
E como é sincero o meu amor,
Eu sei que tu não fugirias mais de mim.

Vem, vem, vem, vem,
Vem sentir o calor dos lábios meus
À procura dos teus.
Vem matar essa paixão
Que me devora o coração
E só assim então serei feliz,
Bem feliz.

Ah se tu soubesses como sou tão carinhoso
E o muito, muito que te quero
E como é sincero o meu amor
Eu sei que tu não fugirias mais de mim

Vem, vem, vem, vem
Vem sentir o calor dos lábios meus a procura dos teus
Vem matar essa paixão que me devora o coração
E só assim então serei feliz
Bem feliz


Aqueles que me conhecem sabem do quanto eu sou apaixonado por música. Cresci ouvindo música: MPB (da década de 70), jazz e depois a música clássica. Parece que meu pai fez uma “trajetória unidirecional” por esses gêneros musicais, porque depois que chegou na música clássica os gêneros anteriores foram, de certa foram, excluídos do seu repertório, ou daquilo que ele ouve.

Comigo esse processo não foi em uma só direção e, naturalmente, já que alguns anos nos separam, meu próprio repertório auditivo incluiu o R&Roll, o Rock nacional, a música brasileira mais contemporânea (até os anos 80, devo assumir), as canções populares americanas, e tudo convive em meu ipod, através do qual desfruto essas magias cifradas em melodias e versos, descobrindo o encantamento a cada audição. 

Apenas para completar essa etapa inicial da minha reflexão, devo dizer que um dos maiores prazeres que posso imaginar é freqüentar as salas de concerto e ouvir uma orquestra, a afinação dos instrumentos, o ajuste do naipes, a execução do repertório. Fico inebriado, zonzo, sinto sono, perco a noção do tempo, e saio invariavelmente modificado pelos sons que me atravessaram os ouvidos, a barriga, minhas entranhas, minha fome, minha respiração, meus olhos e, vez ou outra, minhas lágrimas. É intenso, amplo, singular, individual e se dá pela oferta de um compositor, cuja obra é “desafiada” por uma orquestra, regida pela sensibilidade internalizada para depois ser expressa na regência de um maestro. E nesse exato momento acabo de reconhecer algum traço paterno, observando o quanto me detive nesse parágrafo de caráter introdutório dedicado à música clássica. Assisto passivamente pela janela da alma expressa em minhas letras a amplitude que esse gênero ocupa as minhas emoções.

Mas comecei esse ensaio com um propósito completamente distinto dessa ode à música... eu pensava na concepção subjetiva e no narcisismo como traço essencial do caráter do ser de fala que cresceu e ascendeu ao mundo da cultura, ou da palavra. Apesar de confrontado diariamente com o limite do desejo do outro, da moral reinante, da vida em sociedade, dizemos sempre que traços de um ser que, em sua origem, se descobre na indesejada descontinuidade representada pelo ir e vir do outro, e que tem nessa indesejada descontinuidade um golpe derradeiro em seu próprio desejo, fato cuja superação não se dá sem conseqüências nem sem reminiscências. Circundamos aqui a delicada, mas inevitável proposição, facilmente comprovada – nesse caso, em versos e prosas, como vou querer apresentar – de que o mais nobre sentimento segue atravessado pela mais absoluta ignorância do outro, ou pelo centro do mundo situado no próprio umbigo.


Sigo por onde comecei, com o sucesso de tantas décadas do adorável Pixinguinha: “Carinhoso”. Trata-se de uma sincera e arrebatadora declaração de amor que, contudo, e já peço desculpas pelo terreno inóspito que ouso explorar, completamente egoísta e indiferente a qualquer sinal que venha daquele que é apontado como o objeto de tanto amor.


Vamos acompanhar a letra:

A primeira estrofe descreve o quanto o autor se move, mobiliza e persegue seu objeto de amor. É ele falando de si diante da vivência desse amor à distância.
Na segunda estrofe, ele fala da sinceridade de seu amor (que absolutamente não coloco em questão, vale ressaltar). Contudo, coloca essa sinceridade como razão suficiente para que o seu objeto de amor não “fuja mais dele”. Ou seja, onde está, ou em que estatuto ficou colocado (ou esquecido) o desejo do outro? 

Na terceira estrofe ele descreve como seria o rompimento da barreira que o separa de seu objeto de amor e da sua realização no ato desse encontro... e o outro? Termina a estrofe dizendo que assim será feliz... alguma menção à felicidade daquele que ama?

Vale ressaltar que essa não é uma crítica à adorável obra desse inspirado e apaixonado compositor, de quem sou fã. Não estou apontando nele nada diferente daquilo que facilmente apontaria em mim mesmo ou em qualquer um de nós, seres constituídos sob a égide um narcisismo que nunca perde totalmente a sua força. Ou seja, nós – seres normais e afetuosos – temos grande dificuldade de entender o outro em seus próprios elementos, pois esses se misturam com nossas projeções, nossos sonhos e nossos desejos de tê-los como realização e “remendo” para nossa insuportável e permanente incompletude.

Ciente de ter colocado minha mão em um vespeiro, deixo esse ensaio aqui, à espera das reações que possa vir a provocar.