Há duas semanas, um pouco mais,
um pouco menos, escrevi um texto que chamei de “E a política?” no qual visava expressar
minha indignação com o atual estado de coisas que vivenciamos em nosso país. Dados
os últimos acontecimentos, que estão fervendo nas ruas e nas cabeças da
população brasileira, decidi escrever esse texto, mas em uma espécie de seqüencia
lógica (?) do anterior. Digo seqüencia lógica e coloco o parêntese para já
começar questionando um pouco a idéia de lógica. E já anuncio, de saída, que
para escrever um texto sobre o assunto que todos estão discorrendo e
elaborando, é preciso buscar novas perspectivas, novas seqüencias, novos desdobramentos,
onde o risco seria o de repetir o que outras penas já imprimiram em tantos
papéis: jornais, revistas, sites, cartas, e-mails, e quantas outras formas
sobre as quais as velhas penas, embebidas em potes de tinta, ganharam novas
cores.
Para todo evento há um antes e um
depois. Parece-me que o antes dessas manifestações está bastante claro, e ainda
que as versões sejam muitas, como deve ser, há pouco a acrescentar sobre isso. Mas
o depois ainda é mistério, incerteza e dúvida, mesmo para os próprios
precursores do movimento que, que se tinham uma agenda no seu início, viram
somar-se a ela outras tantas agendas no seu transcorrer. Emolduro as minhas
observações sobre os motivos desse movimento e suas dimensões – o “antes” com pitadas de “durante” – sobre alguns
pontos que me chamam a atenção, e sobre os quais ainda acho que há algo a
acrescentar no campo das reflexões para, então, seguir para o “depois”, suas
possibilidades ou impossibilidades.
Fazendo uma recapitulação do
acontecido, volto ao primeiro dia das manifestações, seus primeiros passos, e o
contexto sobre o qual esse evento teceu seus fios, e ganhou as malhas de uma
classe média extorquida e aturdida, embora calada, por hábito ou comodismo. Um grupo
de estudantes, indignados com o aumento no valor das tarifas de ônibus
(conteúdo expresso de suas queixas) resolveu se unir em protesto. Houve uma
ação policial forte, possivelmente desproporcional (mas sobre cuja “proporcionalidade”
– atenção às aspas – vou tentar me estender um pouco), mas o movimento não
parou. No segundo dia de manifestações, a ação policial ficou evidentemente
mais corpulenta e claramente voltada para coibir a manifestação antes que essa
ganhasse corpo... o gatilho foi disparado: de um lado, as balas de borracha, de
outro a população tomada de indignação e revolta pela ação de uma polícia que
se mostra incapaz de defender os cidadãos (e declara isso seguidamente em frases
como “não temos efetivo suficiente” – “explicação” literal dada pelo comando da
Polícia Militar para o número exagerado de ocorrências na última “virada
cultural” na cidade de São Paulo), mas é capaz de ataca-los de forma
incrivelmente eficiente quando algum interesse maior do que o direito de ir e
vir do cidadão comum está em questão (suspeito ser essa a via que explica a “proporção”
da resposta policial). De outro lado, uma população à beira do penhasco de suas
esperanças e aspirações, que entende o recado e sai às ruas, agora não mais com
um único propósito, mas com vários de uma mesma origem: uma indignação
crescente contra um estado ineficiente, corrupto, vendido (literalmente!), que usa
o recado das urnas para justificar suas falcatruas, seus interesses e esquecer,
ou deliberadamente abandonar, suas obrigações essenciais. Aqui as minhas
perguntas são poucas e muito claras:
- Onde está esse pelotão de choque, que tem capacidade de ação contra dezenas de milhares de pessoas, quando estamos presos em nossas casas, encarcerados por uma escalada de violência que não conhece limites e fronteiras, que assalta (ou arrasta) restaurantes, casas, condomínios pedestres, motoristas, táxis e quem mais vier?
- O que motivou uma reação tão pronta e dura da polícia, ou qual sua voz de comando? Será essa voz de comando a mesma que explica a referida desproporção da resposta policial? (o valor dos interesses a serem “defendidos”)
- Por que
motivo a mídia televisiva permaneceu absolutamente calada enquanto a
polícia atirava balas de borracha (balas são balas, e ferem ainda que não
matem!) e descia a “porrada”, com o perdão da expressão, nos
manifestantes? Repito a pergunta anterior: qual sua voz de comando? Quais os
interesses que defendia enquanto jovens eram espancados nas ruas da
cidade? Seria censura, seria alguma posição partidária ou o dinheiro
investido na realização e na compra dos direitos de transmissão da Copa
das Confederações, da Copa do Mundo e das Olimpíadas?
Não vou me ater às discussões
sobre o “vandalismo”, exceto para dizer que foi clara exceção e, possivelmente,
teve a mesma voz de comando que questiono nas duas perguntas acima, pois nada
melhor para acabar com um movimento do que produzir seu descrédito “de dentro
pra fora”. “Plantar” falsos manifestantes que depredam e agridem é uma
estratégia tão antiga quanto as batalhas da Pérsia, e da qual nossos
governantes e seus heróis são profundos conhecedores. Chamo a atenção para a
armadilha da ingenuidade e para um segundo olhar. Quem tiver dúvidas, veja as
imagens dos manifestantes tentando conter os “vândalos” na porta da Prefeitura
de São Paulo, da Câmara Municipal e do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e
pense um pouco mais sobre o assunto.
Chego ao ponto que considero
ainda pouco falado, e sobre o qual toda essa situação merece a máxima atenção. Vivemos
supostamente em um estado democrático de direito, onde as urnas são o maior
capital e a principal força política que uma a população tem e deve usar. É nas
urnas que devemos nos manifestar, e fazê-lo de forma veemente, clara,
inequívoca e ciente do que está em jogo. As manifestações das ruas são mais do
que importantes: são válidas, lindas e encorajadoras de um processo de mudança
que, contudo, só será levado a termo se soubermos quem é mandatário de quem,
que interesses defendem os candidatos a vereadores, a deputados (estaduais e
federais), a senadores, e às esferas municipais, estaduais e federal do poder
executivo.
A hora de fazer a cola para as
urnas é agora, e não um dia antes da eleição! Anotem quem vota a favor da PEC
37, quem vota em Feliciano (s) e Collor (s) para presidir comissões, quem apóia
Sarney e seu bigode indefectível, quem abraça quem, quem se mostra e quem esconde
sua cara. Vejam quem pede votações fechadas, quem marca reuniões escondidas,
quem constrói estádios padrão FIFA para esse país sem padrão, sem plataforma,
sem base, sem direitos. Lembrem-se da mobilização pela realização da Copa do
Mundo e das Olimpíadas em terras nacionais, e das respostas das autoridades
quando pessoas são assassinadas em assaltos às 11:00hs da manhã. Isso é
desproporcional, muito! Quem não suporta mais a impunidade de Marias e Dirceus
não pode deixar que as urnas sejam uma “obrigação de cidadão” o que, em si, é
um tremendo contra-senso: como um direito democrático (ou em nome de que?) pode
ser transformado em obrigação? Quem ganha com isso? Quem leva as urnas àqueles
que a elas não teriam acesso e em nome do que: da sua possibilidade de exercer
a cidadania, ou da garantia de um voto para um mascarado que sai de São Paulo
ou do Rio de Janeiro pra se eleger em Roraima ou tais?
Esse movimento deve crescer e
amadurecer. Esse amadurecimento deve, necessariamente, passar pelos motivos –
tão bons quanto forem próprios – pelos quais caminhamos em direção às urnas.
Encontrar a própria voz é não mais deixar-se
calar!