sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Lembranças e afetos

Quando eu era menino, lembro de ouvir meu avô Clemente, figura de singular serenidade e sabedoria, médico do homem e da vida e sabedor do tempo e seus registros, dizer calmamente: "eu me sinto como se ainda tivesse 18 anos!". Importante dizer que não sei que idade ele tinha ao pronunciar aquelas palavras, mas posso calcular que ao redor de 80 anos. Mas me lembro, como se fosse hoje, sentado no tapete da sala de estar da casa do vovô "Mente" e da vovó "Mama", em Campinas, com as cortinas meio abertas, a deixar a claridade entrar sem o sol direto a ofuscar nossos olhos (ou os olhos daquela voz jovem, de alma jovem, de mente sábia) dos meus pensamentos de então... eu devia contar entre 5 ou 7 anos de idade e pensava: "como pode um "velhinho" se sentir como se tivesse 18 anos?"

O tempo passou e levou tantas coisas, inclusive o vovô Mente e a vovó Mama, mas nunca empalideceu suas lembranças. Sinto ainda o tapete sob minhas pernas cruzadas, no chão da sala, brincando com a "garagem de madeira" e com meus carrinhos de "matchbox". Sinto o cheiro das poltronas, vejo a luz através das cortinas que tinham um acabamento de cetim verde (suponho que aquilo era cetim), que combinava com a cor do sofá. Lembro dos olhos azuis e profundos do meu avô, e da sua voz firme e gentil dizendo "Xande". Ele tinha uma forma de acentuar o "Xan" que fazia de cada chamado por meu nome um acontecimento! Lembro da minha avó, de lado na cadeira de balanço, suas pernas cruzadas e seus pés com calos nos dedinhos. Eu queria ter os pés daquele jeito: gostava de passar as mãos neles, de fazer carinho na minha avó, e ver os dois se beijando à noite, antes de ir dormir. Ah, minha avó! Ela contava histórias, uma depois da outra, e dizia: "fulano era uma peça!". Foram dias muito felizes! Acho que devo muito do que eu sou, apesar dos defeitos (os meus, é claro!), àquele dois "velhinhos" que se sentiam tão jovens, e que sempre tinham algo a dizer e palavras para nos confortar. Quando íamos embora de carro, pedíamos que eles fossem nos dar tchau na "Rua Augusta". Não sei quem inventou esse nome, mas era na esquina da casa deles.... como tínhamos que dar a volta no quarteirão com o carro, eles caminhavam até a esquina, e quando passávamos eles nos davam tchau com as mãos. Eu pensava que era mágica, que eles iam voando, ou alguma coisa assim. Mas eles davam apenas alguns passos até a esquina.

Assim é o tempo! Alguns passos e o carro passou, o tempo passou, a esquina se foi, a vida levou!
Eu nunca vi meu avós tristes, nunca os vi chorarem, nunca os vi fraquejarem (exceto na doença que acabou por levar meu avô), e a cada dia entendo melhor o quanto meu avô estava certo. Hoje eu tenho 45 anos... mas tenho também 9, quando fui morar no Rio de Janeiro, tenho também 5, quando brincava no tapete da sala em Campinas, tenho também 18, quando "tirei carta", tenho tantas idades quantos registros minha memória traz. E as imagens não ficam amarelas como nas fotos. Os lugares não perdem o gosto, o cheiro, o frio na barriga, a emoção. Posso chorar hoje pela mesma dor que senti quando vi meu avô nos deixar, e sorrir o mesmo sorriso dos "tchauzinhos" na Rua Augusta.

O tempo, como tudo o que é abstrato, como também a morte e o espaço, simplesmente não tem registro "per se" na mente humana. Ele se escreve naquilo que inscreve, naquilo que inclui, naquilo que experimentamos e experenciamos.

Há pouco eu postei um vídeo (no FaceBook)sobre pessoas que vivem "no limite". Certamente não é a única receita, mas uma maneira de dar valor ao tempo, atribuir conteúdo, incluir a vida. E fazer a vida, levar a vida até o dia de ser levado por ela. É com a tinta da emoção que se escreve nas páginas do tempo!

Que possamos sempre nos lembrar disso, e fazer da vida nossos amores, nossos gostos, nossos prazeres, nossas conquistas. Celebrar a vida é sorrir com ela, por ela, sorrir dela, enfim! Se esse banquete tiver receita, que ela seja a entrega!!

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