sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Viver

Em 1917 Freud escreve um texto sob o título de “luto e melancolia”. Descreve o processo de luto como a perda de um objeto “investido” de afeto. A falta do objeto deixa esse afeto “solto”, ou sem ligação, sem possibilidade de ser vivenciado e descarregado psiquicamente: por ações físicas, pelo contato, pela realização do amor.

O luto é algo recorrente na vida, e pode se relacionar a pessoas, a momentos, a épocas das nossas vidas, a amizades, a amores. Em todos os casos, o sujeito que perde seu objeto de amor, tem que construir a possibilidade de reinvestir esse afeto cujo laço objetal foi rompido. Esse investimento
acontece, em um primeiro momento, com o retorno desse afeto ao próprio sujeito, com a capacidade de se reinvestir desse amor, de voltar para si esse afeto cujo elo de ligação com a sua realização foi desfeito. A partir desse retorno “narcísico” do afeto cujo objeto se perdeu, é possível refazer ou construir ligações com outros objetos, com outras pessoas, outros amores, outros amigos, outros
momentos.

A idéia que me ocorre nesse texto é uma reflexão sobre essas infindáveis perdas, que vivenciamos diariamente e que, vez ou outra, nos fazem chorar compulsivamente ao escutar uma determinada música, assistir a um romance “água com açúcar”, ou ao ler certa passagem da vida de um personagem, real ou fictício, de um livro sobre o qual nos debruçamos.

As perdas são reparadas, os afetos são recuperados, reinvestidos, mas as marcas fazem parte de nós, como traços permanentes em nossas histórias e em nossa maneira de nos relacionarmos com o mundo. Viver uma perda é sofrer de uma ferida. Recuperar-se dela, é ver o tecido se refazendo, a inflamação diminuindo, saber que ela vai cessar de purgar e, eventualmente, sarar por completo. Mas é também ver nascer em seu lugar uma cicatriz, tão funda e visível quanto importante e séria foi a ferida.

Vivemos um vida marcados por nossas conquistas, por nossos amores, por nossa amizades, por nossa família. Somos cercados, criados, embalados e construídos em nossas relações com os outros, seja na sua experiência e felicidade, ou nas suas perdas e lutos.

Cicatrizes não doem, não sangram, não purgam. Mas, vez ou outra, nos fazem lembrar da beleza que as precedeu e, nesses momentos, entramos em contato com a magia e a dor, com a poesia e o fantasma, com a vida e com a falta dela.

É nesse pêndulo que nossa vida toma seu rumo. São nesses encontros e desencontros que nascemos, crescemos, somos felizes, sofremos, vivemos e morremos. São essas dores de feridas que não podemos tratar, porque já se foram com o tempo, embora suas lembranças e cicatrizes permaneçam por toda a nossa existência, que nos fazem temer o abismo, não pelo risco de cair, mas pelo desejo e de pular.

Esse é o ciclo da vida, espiral de experiências vividas e revividas, sonhadas, sentidas, relembradas. A vida não pode ser experimentada sem que seja construído um enorme castelo para abrigar o saldo inevitável e indelével de nossas saudades.

O equilibrista de verdade vai ter que encontrar seu caminho em uma corda bamba, passos estreitos e instáveis que oscilam entre o prazer e a dor. Alguém falou que seria fácil?

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